Purga

Ela esta a tentar, outra vez, expurgar os seus demónios. Há pouco mais de um ano atrás tinha sido diagnosticada com ansiedade e ataques de pânico, sintomas que já tinha desde o tempo da universidade, mas para os quais não tinha nome.
Aos poucos a situação foi piorando, até que cinco anos depois de estar fixa num trabalho que a consumia física e mentalmente, não deu mais. Trabalhar em hotelaria não é, nem nunca foi fácil. Tinha-se tornado bem mais difícil quando durante dois anos esteve sozinha na recepção. O horário era relativamente flexível quanto às horas de entrada e saída, se não houvesse clientes. Quando havia, o caso mudava completamente de figura. Ainda assim, em casa o trabalho continuava – verificar e-mails  e responder a reservas, atender o telefone aos clientes independentemente de que horas fossem, porque alguém podia precisar de alguma coisa. Quando finalmente teve ajuda, pensou que era agora que podia enfim, descansar mais um pouco, ter tempo para o marido e para a família. Mas o que aconteceu foi o contrário - agora que estava mais folgada na recepção, podia começar a ter outras responsabilidades. Algumas foram-lhe despejadas em cima e, antes que desse conta, estava mais uma vez atolada em trabalho. Responsabilidades que lhe foram impostas, sem que ela tivesse pedido, algumas eram até do foro da direcção, mas como ela comia e calava, aproveitaram e foram-na pisando.
E foi assim que o corpo deu os primeiros sinais – mau estar físico, enxaquecas, insónias, os batmentos cardíacos a mil à hora, uma tristeza sem fim... era um rol de coisas que são tão difíceis de explicar como de compreender para quem nunca por lá passou.
Todos temos uma quota de níveis de stress, e, quando é doseado até pode ser uma coisa positiva – acaba por fazer disparar a adrenalina e há até quem trabalhe muito melhor se estiver sob algum nível de pressão. O stress é bom... até não ser.
E com ela não foi.
Ao início não ligou e empurrou os sintomas para debaixo do tapete. Uns dias antes de uma semana de férias andava mais feliz, e pensava que o que precisava mesmo era de uma boa dose de descanso. Afinal já nao tinha férias há dez meses e como tal, não tinha motivos para pensar que seria mais do que aquilo.
Não podia estar mais enganada. No primeiro dia de férias já estava a pensar que na semana seguinte tinha de voltar ao trabalho. A angústia consumiu-a e acabou por não aproveitar nenhum dos dias porque se sentia engolida pelo desespero. Foi aí que teve a certeza de que não queria voltar. Não é um bom presságio quando se acorda e a primeira coisa que se faz é chorar como se estivessemos a fazer o luto a alguém que nos é querido e, no fundo, era mesmo isso.
Chorava por ela. Chorava por não ser capaz de aguentar o barco, por não ter a coragem de mandar tudo à merda e virar as costas. Chorava porque era cobarde, frágil e o mundo era injusto. Foi ensinada a nunca ripostar às figuras de autoridade, e sempre pensou que não podia abrir a boca para dar uma opinião que fosse diferente, poque corria o risco de parecer idiota ou de não gostarem daquela postura. E ela queria agradar. Queria fazer um bom trabalho e ser valorizada. Quem a ensinou esqueceu-lhe de lhe dizer que quando crescesse, nem todos lhe iriam dar o valor que ela merece e que não nos devemos dar por inteiro a qualquer um. E ela nunca aprendeu.
O primeiro dia de trabalho foi passado entre tremores, soluços e lágrimas discretas, que tentou esconder de todos, mas que foi impossível. Foi mandada para casa e no dia seguinte às 10 da manhã já tinha sido referenciada para as consultas de psicologia.
A purga foi extremamente difícil. Eram tantos os demónios que tinha lá dentro: alguns que nem ela sabia que existiam e outros (muito poucos, felizmente) que continuam com ela até hoje.
Depois de quase um ano de terapia, deixou o trabalho que tinha e aventurou-se noutra área. Está feliz, sente-se valorizada e não trocava esta nova aventura pela vida anterior. Só que a ansiedade e a frustração são monstros tramados e carentes, que não podem ficar sozinhos e que por isso tentam prendê-la de vez em quando.
Não é fácil esta coisa de querer e não conseguir. Por isso é que ela acha que a parte mais fácil do processo de cura foi a terapia. Enquanto esteve acompanhada, aprendeu a desenvolver mecanismos de defesa que a ajudassem no futuro. Só que ninguém a preparou para o fim. Para que conseguisse ter a mesma “facilidade” em lidar com as coisas quando ficasse sozinha e tivesse de se acompanhar a si própria.

É como se estivesse a aprender a andar, só que não tem ninguém para a segurar se estiver a cair.

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